terça-feira, abril 26, 2011

Olhar de Narcizus

Eu já tinha ouvido falar a respeito daquele par de olhos. Diziam que seu olhar era tão perturbador que até o mais forte e seguro dos homens poderia enlouquecer. Ouvi histórias que afirmavam que aquele era o verdadeiro olhar do desespero, e que seu poder provinha das trevas.
Aquela criatura vivia sozinha, como se fosse um ser humano normal, mas até hoje não é possível dizer se alguém foi capaz de fitar aqueles olhos e sobreviver. Como pode ser possível a existência de algo com o olhar tão cruel, capaz de enlouquecer uma mente e matar?
Já ouvi dizer que uma jovem morreu no exato momento em que seus olhos encontraram os olhos da criatura. Mas a maioria dos relatos se repete de outra forma; o indivíduo fica perturbado, fala bobagens, sua mente é abalada e a insanidade o leva ao suicídio.
Como é possível existir olhar capaz de causar isso? O que haveria de errado com o rosto dessa criatura? Pois não acredito que, de fato, seu olhar seja responsável por tudo isso. Deve existir algo em seu rosto, alguma deformação, talvez. Ou então, ele não teria olhos. Mas, sabe-se que é capaz de enxergar, então isso não faria muito sentido.
Um olhar capaz de deixar uma pessoa insana! Meu Deus, como?
Passei toda a minha vida sabendo dessas histórias e parte dela tendo a certeza de que todas são reais.
Meu nome é Narcizus, filho da sétima casa de K. Sou a criatura humana dona desse olhar que mata as pessoas. Vivo sozinho e vivo sem saber o que há de errado comigo. Mas digo-lhes que eu vivia sem saber... Pois farei algo do qual sei que não deveria, vou olhar meu rosto pela primeira vez e descobrir o que existe nele. Irei relatar o que vou sentir ao me observar e serei breve, pois talvez meu fim seja certo.
Pego o espelho e com os olhos fechados coloco-o diante de mim. Seguro a caneta com firmeza e, por fim, abro os meus olhos. Vejo luz, beleza e segurança. Deus, como meu olhar é puro! Como esse olhar pode matar alguém?
Transmito paz e confiança. Tento tocar o meu reflexo no espelho, quero estar próximo de mim mesmo. Quanta luz! O mundo gira ao redor desse olhar puro. Vejo-me como um anjo mensageiro da felicidade. Meus sentidos vacilam e começo a compreender o contraste do meu olhar com o mundo em que vivemos. Acho que em breve irei perder a consciência. Ainda vejo força, sinceridade; não quero me afastar desse olhar. Mas a escuridão se aproxima; tudo está se acabando.Vejo um perturbador olhar imaculado. Vejo que esses olhos me puxam para um mundo onde a beleza e a paz se tornam perturbadoras. O ser humano não está pronto para isso. A loucura e a insanidade se aproximam de mim, a luz está desaparecendo. Não vejo nada! Não vejo nada além do meu fim e da minha morte. A morte provocada pelo meu próprio olhar.

segunda-feira, abril 11, 2011

Última mentira

- Eu estou bem!

Foi o que disse pra ela.


No instante seguinte eu já sentia o abraço dela ao redor do meu corpo. Tudo aconteceu tão rápido, que eu não me lembraria dos detalhes se fosse outra situação, além dessa a qual me encontro. Tudo o que eu queria era protegê-la e evitar que se assustasse.

Estávamos felizes e conversávamos sem nos preocupar com nada. Ela me dizia sobre o que tinha aprendido na escola, mas eu não prestava muito atenção no conteúdo de suas palavras, pois o brilho de seus olhos e a beleza de seu sorriso me distraiam. Ela estava feliz, e aquilo me importava mais do que qualquer outra coisa.

Não pude nem mesmo ver quando se aproximaram do carro. Não ouvi nenhuma palavra, só me dei conta do que acontecia quando seu sorriso se apagou. Ela não disse nada, mas a mudança repentina em seu rosto me fez olhar para o lado. A arma já invadia a janela do carro, e só então pude ouvir a ordem de descer. Não perdi a calma, alertei ao assaltante que ia tirar o sinto e que minha filha ia descer do carro. Mas tudo mudou. Uma única frase, composta por duas palavras, foram o bastante para fazer as coisas mudarem. “Ela, não!”, foi o que ele disse. Como poderia descer do carro e deixar minha filha? Como poderia abandoná-la? Meus olhos estavam fixos, olhando para frente, mas sem enxergar nada. As coisas mudavam dentro de mim e aquela dominante calma que sempre carrego, partia.

O assaltante notou que eu olhava para frente de maneira fixa e desviou seu olhar para ver para onde eu olhava. Foi aí que tudo mudou. Rapidamente eu segurei sua mão e acionei o fechamento do vidro. Seu braço foi prensado, mas ainda foi capaz de disparar umas três vezes antes de largar a arma. Ela gritou com o barulho dos tiros e com o vidro que se partia. Felizmente, não fomos atingidos.

Desarmado e com o braço ferido, o assaltante tentou correr. Mas eu não tinha mais a habitual calma de sempre e o persegui. Pulei sobre ele e o que se passou, não ficou claramente gravado em minha mente. Meus olhos estavam injetados, meus dentes e punhos estavam cerrados, e estes, desciam como martelo sobre ele. Não conseguia controlar meus braços, que espancavam violentamente o rosto do assaltante. O sangue espirrava, ora de seu rosto, ora de meus punhos cortados.

Se o tempo passou, eu não sei. Mas dado momento, eu já não estava mais sobre ele, mas de pé, diante de seu corpo inerte. Olhava para minhas mãos, sujas de sangue e só então pude ouvir sua voz atrás de mim.

- Papai!? Você está bem?

- Eu estou bem!

Foi o que disse pra ela.

No instante seguinte eu já sentia o abraço dela ao redor do meu corpo. E só então, que pude notar a dor em meu peito e a origem de tanto sangue. No calor da raiva, não notei que ele ainda tinha uma faca; nem mesmo pude ver esse detalhe. Não senti quando a lâmina fria perfurou meu peito em dois lugares. Mas mesmo assim, eu sorri. Mesmo tendo contado a minha última mentira para ela.

Eu não estava bem.

terça-feira, abril 05, 2011

Feio

Cara, corpo, alma. Uma combinação de coisas que nem sempre estão combinadas. Contraditório né? Altos e baixos, gordos e magros. Claros, escuros, ou nem tanto. Azul, verde, vermelho... Que diferença isso faz? Liso, ondulado, careca, com mechas, sem pelos. Tatuagem, brinco ou pulseira. Diferenças que são vistas e, podemos parar por aí. Nossa visão não é capaz de ir muito mais além do que esse tipo de diferença. O sangue tem a mesma cor. Coração, pulmão, estômago e um par de rins. Ok, ok, alguns não possuem esse par, mas que diferença isso faz? Se o nariz é reto, curvo ou amassado, isso muda algo? Alguns olhos olham paralelamente para frente, outros possuem certa dificuldade para permanecerem paralelos. Mas isso quer dizer algo? O sol se põe para todos, assim como o mundo gira sob nossos pés na mesma velocidade. Independente de termos um, dois ou nenhum dos pés. O fato é que ele gira para todos. Uns possuem peruca, outros usam óculos. Alguns usaram aparelho nos dentes, outros fizeram cirurgia no nariz. Silicone está sendo vendido na feira e os excessos são tirados até com uma faca cega. Enfim... a solução para quase todos os problemas, existe. Se você cansou do castanho, pode pintar de ruivo, e se cansou do verde, pode usar lentes azuis. Não precisa brigar com a balança, você pode ter um personal e um nutricionista. Com determinação, seus problemas serão resolvidos. O acesso dessas soluções pode não estar ao seu alcance, mas mesmo estando, você precisa disso? Seria você capaz de viver com óculos ou com uns quilinhos a mais? Acho que todos nós somos. Mas o ponto é que, quem nos olha e nos julga nem sempre é. A maioria das pessoas é forçada a agradar os olhos alheios e esquecemos daquilo que realmente é importante na beleza; aquilo que os olhos não podem ver. Não basta termos uma boa índole, sermos educados e agirmos para tentar melhorar as coisas. Não basta sermos engraçados, companheiros e nem mesmo buscarmos o conhecimento. Isso não pode ser visto através dos olhos, portanto... é trivial. Mas eu insisto em pensar diferente e por isso, eu fiz minha escolha. Vou continuar sendo feio!