Antes mesmo do ato ela ouve seu grito ressoando através da sala e desaparecendo no silêncio dele. Ela o sente nas têmporas.
Pelo barulho dos passos no piso de madeira, enquanto seus pulmões rasgam, ela percorre sua via-crucis diária até lá em cima, no quarto dele: ela na cozinha lavando os pratos, secando a roupa, vagando pela casa. Ela sentindo aquela fisgada e a chama se acendendendo e ela largarndo tudo e sendo guiada por estímulos ancestrais através dos cômodos até chegar ao quarto dele, ele a vê, ela está de camisola, uma das alças caídas no ombro, um vislumbre róseo, o marido sentado à máquina, seu corpo curvado, as mãos erguidas inertes no espaço entre o dorso e a máquina, olhos vazios fitando a porta, ela o olhando diretamente nos olhos e se aproximando, e mais um passo e o bater no teclado do computador, o olhar dela morrendo invisível no meio do caminho. A chama se congela e forma-se um lago de onde emerge um monstro de mil olhos que cercam a mulher ridícula, seminua, puta. Tec tec tec. Tec tec tec.
O silêncio ao redor deles forma uma malha sísmica no ar; os dois como placas tectônicas, o silêncio como o estrago visível na superfície. Ela respira fundo tá vendo esse silêncio, seu cafajeste, ele é seu, é meu presente de guerra, meu esforço de humanidade no meio da matança geral, meu tratado de paz, mas não tiro o dedo do gatilho, nunca se sabe se o canalha esconde a arma entre os contratos de paz na mala mas o ar sufoca o grito.
A parte interior dela que chama de consciência refugiou-se no lodaçal onde nasce a raiva, invencível. Do mesmo modo como abandonara a si mesmo e se entregara de corpo e alma ardentes para ele, do mesmo modo fora rejeitada, seu corpo em brasas relegado a um canto frio da imaginação dele, de onde a apanharia de acordo com as imposições da folha em branco, que é como ele entitulava o sistemático processo de humilhação ao qual a submetia.
Ela não pode chorar. Tenta não tremer. Muda a posição das mãos e dos pés, procurando na gesticulação uma justificativa para seu corpo estar onde estar, de camisola em plena luz do dia. Tec tec tec é o som do silêncio. Não há um ruído no quarto, modorrento. A escada está limpa, recém encerada, a sala quieta. Não possuem filhos. O vento não sibila no jardim. Da janela se vê o mar, muito distante, cujo som morre no meio do caminho, como o olhar dela. A espuma das ondas uma faixa branca muito longe, desejo desperdiçado, vida desperdiçada, um homem castrado, a semente esparramada, longe, tão longe, batendo e voltando, morrendo no meio do caminho, do esperma no mar nasceu a deusa do amor, trancafiada em suas próprias entranhas por um cafajeste
O som da máquina cessa. Ele a olha e pergunta “o que foi?” Ela deixa o mar como Afrodite e olha para ele, que está falando ele está falando ele está falando. O que foi? O que foi? Não foi nada, só estou aqui presa dentro de mim sendo queimada pelo fogo e não consigo sair, e não consigo fazê-lo sair e você não dá a mínima não mais me olha nos olhos não me pega nos braços não tira a minha roupa me faz sentir uma puta horrível aleijada quando venho até você com o corpo que ainda possuo por sabe deus quanto tempo, e aí depois de uma semana assim você de repente aparece um dia no meu quarto e me dá um beijo um amor e me pega pela mão em silêncio e transforma a chama num fogo que incedeia nós dois juntos e me faz acreditar que eu não mais vou morrer incendiada sozinha, então quando nós dois estamos deitados abraçados eu perco o medo da morte pois você se se juntou a mim no fogo e no silêncio e no meu medo da noite e aí eu não tenho mais medo da morte pois sei agora que ninguém morre sozinho… e aí e aí no dia seguinte você
“Não é nada”, ela responde.
(continua)
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