segunda-feira, outubro 04, 2010

Projeto Ficcional (pt 2 - fim)

Primeira parte aqui.

***


Ele se levanta e põe as mãos nos ombros dela. Ela está olhando para baixo, em silêncio. Os dois permanecem assim por vários segundos. Ele a abraça. Tec tec tec. “Como vai o seu ensaio?”, ela pergunta. “Vai mal”, ele responde, “cada vez mais eu percebo como é impossível representar o amor, o desejo na arte através de uma linguagem fria, não apaixonada.” “Entendo.” Ele desenlaça os braços dela, vai até a janela e fica olhando o mar, as ondas batendo e voltando, a espuma surgindo e morrendo no caminho de volta. “O que eu mais sinto falta nesse trabalho é de um personagem pra viver precisamente aquilo que eu estou analisando. Assim a coisa se tornaria eloquente por si só, e aboliria qualquer necessidade de um raciocínio lógico e embasado.” Ele se vira e olha para ela. “Você sabe que é minha musa inspiradora. Não sei o que seria de mim e de minha carreira sem acordar de manhã e encontrar sua beleza na cozinha ainda de camisola. Ainda não te mostrei aquele conto que escrevi sobre você.”

Ela o escuta com atenção. Ele termina de falar e ela percebe sua expressão ficar subitamente séria. Ele começa a andar na direção dela. O caminho da janela até ela é longo. Uma onda atravessa o seu corpo. Ela se inclina para o lado, a alça da camisola cai. Ele a beija na testa calor e diz que precisa voltar ao trabalho, e se senta novamente em frente a máquina. Tec t-

Ela sente seu estômago queimar. Vai até ele, põe a mão nos seus ombros, dá-lhe um beijo na bochecha. “Meu amor, me explica melhor o seu ensaio. Por favor. É um pedido da sua musa.” Ele olha para ela e abre um sorriso enorme.

Ela agora está sozinha. Olha para o mar. Sente algo cozinhando em seu ventre.

“Claro que eu explico. Primeiro eu escrevi uma ficção onde eu tentava me autorepresentar como uma figura fria que era incapaz de sentir desejo, Uma coisa morta é isso que eu sou, uma coisa morta, fruto do desejo interrompido, eliminado, a semente desgastada de um falo inútil, que dá a vida mas não a vive mesmo ele estando bem diante de mim, e tentei trazer a isso uma questão mais geral, sobre a incapacidade de se falar de fato sobre a arte de modo não-artístico. que tem a chama a queimar eternamente, consumindo a si própria, incinerando as entranhas no calor infinito, o inferno do desejo, do ardor, O próprio personagem teria a consciência da sua frieza e falharia ao ser posto em conflito com o desejo real. Mas mesmo ele tendo a consciência do problema ele não conseguiria superá-lo, pois no fim das contas é impossível falar de certas coisas a não ser por meio da ficção, e a autoconsciência metalinguística é só uma coisa cerebral. que resiste ao vento frio, que se se mantém quando o universo congela, sinto o vento frio e nada posso fazer pois não apago, continuo queimando, tudo queima, arde, dói, faminta incendeio florestas inteiras, desmato a vegetação e elimino toda a vida em busca da fruta suculenta, que é cabornizada no meu toque O conto em si seria a representação disso tudo. As falhas são óbvias, mas tentei trabalhá-las dentro da verossimilhança, meio que me antecipando aos problemas que eu próprio teria criado. Sou uma aranha nessa floresta de fogo sendo devorada pela minha cria, sofro o castigo eterno de um deus, sou parte de um infinito tecer de um ser nojento curvado sobre si mesmo que me tece e em seguida me suga a vida para si próprio criar as suas O trabalho conteria em sua estrutura essa incapacidade, e no fundo passaria a ideia de que só é realmente possível trabalhar o desejo através da narrativa, como trabalham os mitos dos deuses gregos, e qualquer tentativa de autoconsciência levaria invariavelmente ao fracasso. E dentro do conto, você é o contraponto a essa frieza, com sua beleza, seu frescor juvenil, seu estatuto, para mim, de deusa. sou bela mas minha beleza é tomada de mim, sou a espuma do mar eternamente contemplada pelos amantes que tomam meu amor para me observarem nascer e morrer no belo rítmo das ondas sou essa música eterna crescendo crescendo crescendo crescendo

Para completar, o ensaio seria a última camada lógica e racional da análise da minha própria ficção.” crescendo crescendo crescendo. Ele termina, e o silêncio do quarto torna-se palpável. até sair.

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